A autolimpeza da PF
André Rizek e Thaís Oyama
Paulo Vitale |
PLANEJAMENTO E AÇÃO Na retaguarda das megaoperações, pilotos, pára-quedistas e atiradores (foto);à frente das investigações, o Departamento de Inteligência |
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Nos últimos vinte meses, a Polícia Federal (PF) prendeu 44 de seus integrantes, acusados de corrupção. Eram agentes graduados e delegados que, escudados por um distintivo e um uniforme, facilitavam o contrabando de armas nas fronteiras, lideravam esquemas de roubo e receptação de carros, atuavam em quadrilhas especializadas na adulteração de combustível e locupletavam-se no tráfico de drogas. Seis presos já foram demitidos e outros 38 estão suspensos, aguardando o término dos processos internos de expulsão. Caso eles se confirmem, a PF terá feito o maior expurgo de sua história.
O processo de autodepuração por que passa a corporação é fruto de duas mudanças que tiveram início no anos 90 e começam a se consolidar agora: a primeira, de metodologia; a segunda, de valores. Ao negar o corporativismo e mirar suas próprias fileiras, a Polícia Federal deixa clara a opção por expor suas feridas, para purgá-las em seguida, em vez de escondê-las até que se transformem em um câncer incurável. Se esse saneamento é bom para a instituição, é melhor ainda para o país. A prática comprova que todo esquema de corrupção necessita da cumplicidade de um agente público para subsistir. Das 23 últimas grandes operações executadas, catorze resultaram na prisão de servidores públicos – incluindo, além de policiais federais, rodoviários e civis. Ao atacar esse flanco, ainda que isso signifique cortar a própria carne, a PF ajuda a combater um dos principais pilares da corrupção. O sucesso da prática não traz apenas ganhos morais: produz benefícios concretos para o Brasil, que seriam ainda maiores se outras instituições também empreendessem um processo de autolimpeza.
Tome-se o caso de Hong Kong. Em 1970, a ex-colônia inglesa tinha renda per capita de 970 dólares e era um exemplo clássico de ineficiência e corrupção – fruto, principalmente, da relação promíscua entre as suas polícias e os apostadores de jogo ilegal. O governo tomou duas atitudes para reverter a situação: legalizou o jogo e promoveu uma varredura nos quadros policiais, que incluiu uma caça aos corruptos e a implantação de intensivos programas de treinamento e reciclagem. Hoje, o território chinês é considerado um dos lugares mais seguros do planeta, ocupa o 14º lugar no ranking da Transparência Internacional que lista os 133 países que melhor combatem a corrupção e sua renda per capita é de 25.430 dólares. "Hong Kong só virou um próspero Tigre Asiático porque conseguiu livrar-se dos níveis indecentes de corrupção", afirma Daniel Kaufmann, economista, diretor do setor do Banco Mundial de estudos sobre corrupção (veja entrevista). Nova York viveu experiência parecida. A reforma da sua polícia – que, além da substituição de policiais, incluiu até o redesenho dos uniformes, tamanho era o desgaste da instituição entre a população – acabou por reduzir à metade os índices de criminalidade na cidade nas últimas duas décadas. Kaufmann diz qual foi o resultado imediato: "O dinheiro que evaporava com o crime passou a ser investido no desenvolvimento".
Rafael Neddermeyer/AE | Ana Araújo |
ADEUS, BALTAZAR Para o ex-superintendente da PF em São Paulo Francisco Baltazar (na foto, sendo cumprimentado pelo diretor-geral, Paulo Lacerda, de óculos), o fato de ser amigo do presidente Lula não garantiu sua permanência no cargo. Alvo de uma série de acusações, foi obrigado, em agosto, a pedir demissão – alegre e prontamente aceita. Ao lado, grupo da PF especializado no controle de distúrbios de rua |
O processo de autolimpeza da PF, cujos primeiros frutos estão sendo colhidos agora, começou a ser montado em 1997. O ponto de partida foi um concurso para novos agentes – desde então, obrigatoriamente portadores de um diploma de curso superior. De lá para cá a corporação foi renovada em dois terços de seus mais de 7.000 integrantes. O processo ganhou fôlego no governo Fernando Henrique Cardoso e intensificou-se no ano passado, com a troca de comando na direção. Uma instituição, qualquer que seja ela, é moldada por leis e normas, mas cumpre suas funções por meio de homens. Quanto melhor for o caráter deles e mais sólida a sua formação, tanto mais saudável e eficiente será a instituição. A reforma da PF não foi fruto de mudanças apenas na legislação, mas principalmente se nutriu da iniciativa de um grupo de elite de policiais que assumiu seu posto determinado a transformar as feições da corporação. À frente deles, está hoje o atual diretor-geral, Paulo Lacerda, de 58 anos. O delegado, nascido em Anápolis (GO), começou a carreira no Rio de Janeiro como papiloscopista – seu trabalho era identificar cadáveres mediante a análise de impressões digitais. Em 1992, já delegado federal em Brasília, presidiu o Collorgate, inquérito que apurou a ligação do esquema PC Farias com o ex-presidente Fernando Collor de Mello. Foi nessa época que conheceu o atual ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que o tirou da aposentadoria para dirigir a PF. Lacerda levou para a corporação sua confessada falta de pendor para tiroteios e o gosto pelo trabalho de inteligência, hoje prioritário na PF.
O serviço de inteligência consiste, basicamente, no exercício de ampliar uma investigação até o seu limite. Em vez de focá-la no propósito de descobrir "quem-está-fazendo-o-quê-contra-quem", a inteligência se propõe a descobrir, sobretudo, quem está fazendo o quê "junto-com-quem" – para, a partir daí, fisgar não só bagrinhos como também peixes gordos. Exemplo: ao receber uma denúncia sobre policiais e fiscais da Receita envolvidos em facilitação de contrabando, a PF, até recentemente, ouviria os suspeitos e, a partir daí, passaria a buscar provas que pudessem incriminá-los. Hoje, deixa o esquema funcionar pelo tempo necessário, para que possa monitorar o seu funcionamento por meio de escutas telefônicas e agentes infiltrados, entre outros procedimentos. Mapeado o esquema, as informações coletadas são estudadas por um grupo de analistas que, com base no cruzamento de dados, junta as peças que ajudarão os investigadores a chegar aos cabeças do crime. As megaoperações desencadeadas nos últimos tempos pela PF (veja quadro ao lado) são resultado da aplicação dessa metodologia. Sem o disparo de um único tiro, elas levaram à prisão de 458 pessoas, incluindo políticos, delegados, empresários e um juiz federal. Na última quinta-feira, esse número foi acrescido de mais 21 pessoas, presas no Rio de Janeiro por envolvimento no narcotráfico internacional. Recentemente, espalhou-se que os agentes da PF estariam burlando a lei ao grampear primeiro seus alvos e só depois pedir ao juiz o mandato de escuta. Não é de todo improvável que isso tenha ocorrido, até porque entre os alvos dos grampos estiveram os próprios juízes suspeitos de envolvimento com criminosos. Na retaguarda das ações, estão grupamentos como a Coordenação de Aviação Operacional (Caop), formada por pilotos, pára-quedistas e atiradores, cuja missão é dar suporte aéreo armado para a localização e destruição de laboratórios de cocaína, por exemplo, e o Comando de Operações Táticas (COT), que atua em situações de alto risco. À frente das investigações, está o Departamento de Inteligência Policial (DIP).
Sebastião Moreira/AE |
TERRA E MAR Apreensão de drogas e patrulhamento de barco na região amazônica: faltam agentes |
Marizilda Cruppe/Ag. O Globo |
O DIP ocupa o 5º andar do prédio da superintendência da PF em Brasília. O local, ao qual nem os demais homens da corporação têm acesso, possui normas, cultura e logística próprias. Seus integrantes não almoçam com agentes de outros andares, não vão às festas de confraternização e têm os rostos desconhecidos pela maior parte dos colegas – que, volta e meia, são obrigados a investigar. Dependendo da situação, os homens do DIP podem ser confundidos tanto com empresários quanto com funcionários da faxina, ou mesmo mendigos – camuflagem usada no ano passado por um deles, em uma operação destinada a apurar a ligação de policiais com quadrilhas de roubo de carros em Campinas, no interior de São Paulo. Empenhado em monitorar a rotina de um suspeito de envolvimento com o esquema, o agente, disfarçado em trajes maltrapilhos, instalou-se na calçada da casa do colega por uma semana. A tarefa só pôde ser realizada porque seu rosto era desconhecido. Parte do trabalho de filtragem dos agentes que ingressam na corporação também fica por conta do DIP. Os candidatos aprovados em concurso só são efetivados depois de ter a vida esmiuçada pelos responsáveis pela chamada "investigação social". Entre as tarefas dos investigadores está a de visitar lugares como a casa, o local de trabalho, a faculdade em que estudou o futuro policial e até o bar a que ele mais gosta de ir. As perguntas a parentes, ex-chefes, namoradas e amigos incluem desde o número de copos de cerveja que o candidato consome numa noite até a freqüência com que ele chega atrasado ao trabalho. A situação financeira do candidato também é esquadrinhada (não pode ter dívidas). A experiência mostra que a filtragem na entrada é a melhor maneira de evitar a necessidade de expurgos maciços mais adiante. O FBI americano utiliza até polígrafos no processo de seleção de seus policiais. Para se ter uma idéia de como a seleção da polícia federal americana é eficaz, de 1950 até hoje, o FBI prendeu apenas doze agentes por má conduta.
O formato atual do Departamento de Inteligência revela outra mudança profunda na PF: o seu desaparelhamento. Criada em 1964, no início do regime militar, a instituição foi, por muito tempo, uma espécie de apêndice do Exército – e o DIP, seus olhos e ouvidos. Até 1986, todos os diretores da PF eram militares. O primeiro civil a assumir o cargo foi o delegado, e hoje senador, Romeu Tuma. Até esse momento, no entanto, a PF mantinha um estreito vínculo com o governo, abastecendo-o com informações que considerava "de interesse do Estado". Foi na administração Fernando Henrique Cardoso, em 1995, que a instituição começou a se desatrelar do governo. Hoje, a função de municiar o Planalto de informações estratégicas é da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). À PF cabe, exclusivamente, investigar crimes – inclusive os que possam ter sido cometidos por membros importantes do governo. O inquérito que apura o caso Waldomiro Diniz, o ex-funcionário da Casa Civil pilhado pedindo propina a um bicheiro, poderá ser a primeira oportunidade de testar essa independência. Outro teste para a PF terá início nos próximos dias. Ela deverá deflagrar uma nova operação, desta vez envolvendo uma empresa de investigação e suas relações com um conhecido e influente banqueiro carioca. Muitos peixões deverão ser pescados em tal oportunidade.
As transformações ocorridas na PF, incluindo a metodologia que vem sendo aplicada às operações, não têm a aprovação unânime de especialistas. O coronel da reserva da PM José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública no governo anterior e pesquisador do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, embora elogie a execução de "algumas das operações da Polícia Federal", acredita que elas carecem de seqüência. "A PF não tem efetivo para dar continuidade às suas ações. Na Operação Anaconda, por exemplo, há uma pilha de documentos à espera de análise." O ministro Thomaz Bastos concorda que o efetivo da PF é insuficiente. O FBI americano tem 12.000 homens, mas é apenas uma das três polícias federais do país. O Drug Enforcement Administration (DEA), encarregado do combate ao narcotráfico, tem 5.300 agentes. O Department of Homeland Security (DHS), para controle de fronteiras e imigração, tem 7.200 só nos aeroportos. Outra torrente de críticas parte do sindicato da categoria. Para o vice-presidente da entidade, o policial João Valderi de Souza, a estratégia da PF de esconder informações sobre investigações em curso até mesmo de superintendentes das regiões onde elas se dão "fere a ética da categoria e coloca colegas sob suspeita e promove a desmoralização de policiais". É o tipo de frase que trai uma visão corporativista. A verdade é que, numa corporação em que ainda há muitos corruptos, investigações supersecretas são uma necessidade. Só assim é possível impedir que haja vazamentos e tudo termine em pizza. O ex-superintendente da PF em São Paulo Francisco Baltazar por mais de uma vez expressou indignação por ter sido alijado de três grandes operações deflagradas por Brasília em São Paulo – duas das quais resultaram na prisão de delegados ligados a ele. Baltazar havia sido indicado para o cargo pelo presidente Lula, a quem serviu como chefe de segurança nas quatro últimas campanhas presidenciais. Em agosto, teve seu pedido de demissão prazerosamente aceito pela direção, depois que, na seqüência de um longo período de desgaste, investigações revelaram a existência de uma conta bancária no exterior em seu nome. O auto-saneamento da PF, afirma Lacerda, não visa apenas a livrar a corporação dos maus elementos que ela abriga hoje, mas, principalmente, a mudar a cultura de tolerância com que parte da instituição encara os policiais desonestos. Afirma o delegado Lacerda: "Nossa avaliação é que a Polícia Federal hoje tem 10% de policiais corruptos e 10% de homens combativos e indignados com essa corrupção. Os outros 80%, embora honestos, ainda fazem vista grossa aos colegas que cometem delitos. O problema é que essa turma é tão nociva quanto quem pratica os crimes. Nosso projeto é expulsar os corruptos e despertar o sentimento de indignação no policial ao ver um colega incidindo em crime".
O delegado Lacerda é conhecido pelo seu temperamento discreto. Avesso a entrevistas, holofotes e discursos, é do tipo que, quando comparece a um evento público, permanece encolhido em um canto até que alguém lhe dirija a palavra. À parte sua personalidade retraída, o comportamento envolve um tanto de precaução profissional. Em um universo em que a espionagem e a "plantação" de informações são artigos fáceis, ele sabe que é um alvo e tanto para os inimigos. Há algum tempo, relatou a amigos um episódio que só reforçou sua convicção sobre a necessidade de aparecer o menos possível. No ano passado, num fim de semana em que não pôde voltar para o Rio, onde mora, resolveu matar o tempo na piscina do hotel em que se hospeda em Brasília desde que assumiu o cargo. Enquanto tomava sol, foi abordado por uma loira vistosa que, vestida em biquíni minúsculo, o cumprimentou com uma cordialidade que ele achou exagerada. Depois de dizer que o conhecia e o admirava de longe, a mulher perguntou se podia sentar-se ao seu lado. Lacerda contou a amigos sua reação: "Olhei em torno e a piscina estava cheia de rapazes. Pensei: sou um velho, alguma coisa está errada. Nessa hora, lembrei do caso do Luiz Francisco". O diretor se referia ao procurador da República Luiz Francisco de Souza, que, por pouco, não teve a polêmica carreira encerrada ao envolver-se, cinco anos atrás, com uma "andorinha". O termo, no jargão da espionagem, designa as agentes que se disfarçam de amante apaixonada para obter informações de seu alvo ou criar uma situação comprometedora com o objetivo de desmoralizá-lo. O procurador só percebeu que caíra em uma emboscada quando sua andorinha, na verdade uma soldado da Polícia Militar do Distrito Federal, tentou forjar um espancamento no quarto de um motel em que eles se encontraram. Diante da lembrança, Lacerda bateu em retirada e nunca mais foi visto na piscina.
A história mostra que todos os países que obtiveram sucesso no combate ao crime organizado passaram por transformações em suas polícias. Foi o caso da Itália, nos anos 80. Ao reconstituir sua força policial e conquistar a adesão de um grupo de magistrados honestos, o governo conseguiu enfraquecer a Máfia. "A maior conquista, porém, foi ter conseguido, com isso, mudar a mentalidade de toda uma população, acostumada a tolerar a corrupção", avalia o pesquisador de estudos de corrupção do Banco Mundial Yasuhiko Matsuda. Ele lembra, no entanto, que o caso italiano só teve sucesso porque a depuração da polícia ocorreu simultaneamente com a reforma de outros órgãos públicos, como o Judiciário e o Fisco. O Brasil ainda está longe disso. Mas tem na Polícia Federal um exemplo a ser seguido.
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É ou não é para ter orgulho dessa instituição?
Esse foi um dos melhores posts que já li. Mesmo sendo reprodução. Em tempo, achei a investigação social meio utópica pra realidade brasileira. Será que é assim mesmo?
ResponderExcluirOi Ellison,
ResponderExcluirtambém achei fantástica essa reportagem.
Eu acredito que a investigação social seja isso mesmo e eu acho certo, porque é no dia-a-dia do cidadão que a corporação vai saber quem realmente é o candidato e já faz uma seleção refinada, acho que seja até mais interessante que a prova objetiva, mas dessa aí não tem como fugir, então rumo aos estudos!!!
É, meu amigo, para ser PF tem que ser TOP de LINHA, não é para qualquer um. É por isso que quem quer seguir essa carreira tem que andar na linha. Acho ótimo, bato palmas em pé para eles, não há como não ser fã
um bjo e obrigada pelo teu comentário
sabe, às vezes penso como é importante a repressão ao tráfico, a crimes sexuais, à exploração de pessoas e tal, mas, em verdade, a criminalidade do colarinho branco, os crimes cometidos por funcionários públicos, no mais das vezes, sem qualquer tipo de violência física, sãos os mais drásticos e prejudiciais à sociedade. geram uma gama enorme de violências outras e prejuízos de toda a sorte à sociedade. eu mesmo, desisti de advogar por conta dessas corrupções já contumazes e aceitas por todos.
ResponderExcluirArtorius,
ResponderExcluireu acho que esses crimes os quais você citou primeiro são crimes que afetam a todos também, mesmo que sejam pontuais e abargam apenas um grupo de pessoas, mas envolta daquilo, há estragos imensuráveis
Melhor coisa que você fez, na minha opinião, foi se dedicar para o concurso, logo você verá o resultado
ah, sim, concordo, mas, olha, na minha opinião, o estrago do colarinho branco é maior, o que não diminui, todavia, o desvalor dos primeiros crimes não.
ResponderExcluiro problema é que nós, brasileiros, acabamos tolerando mais os crimes contra a administração, em um sentido mais amplo, do que os demais, justamente pq não temos uma boa capacidade de nos indignar adequadamente com isso.
ah isso é verdade, o rombo que eles fazem são de alguns milhões apenas, nisso muita coisa deixa de acontecer e/ou acontece com outras. E a tolerância continua aí, parece que realmente ninguém mais se indigna com os escândalos que saem na mídia dos crimes do colarinho branco, inclusive nós mesmos, mas quando nossa hora chegar, espero fazer nossa parte a que viemos
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